EM SÃO MIGUEL O ANJO

domingo, 29 de janeiro de 2023

A MOURA DA TERRA DO ZÉ

 A MOURA DA TERRA DO ZÉ

Conto dos anos 80

A moura era uma mulher popular, de pequena estatura, muito metediça e atenta ao vai e vem de contos e ditos da vida dos paroquianos. Assumia-se responsável pelas ofertas entregues pelos devotos, e orientadora de todos quantos colaboravam no arrumo, limpeza e enfeites no interior da sua igreja, situada mesmo em frente à sua janela.

Muito dada e servil às politiquices do poder local, que colocava na mesma bandeja religiosa, um dia reagiu estranhamente a uma notícia no jornal local, publicada pelo Zé, repórter da terra: - “Então escreveste a dizer mal dos nossos”!?
O Zé, de momento, não entendeu o que a Moura quis dizer, até que ela explicou as razões da sua observação. E o Zé reagiu: : – Ó Moura, eu não tenho nossos nem vossos, eu sou só eu, não tenho partido, nem religião, nem clube de futebol, já foi tempo; não escrevo para agradar ou desagradar, somente para informar.
Ela, muito séria, ouviu e disfarçou sorrindo, mudando de assunto.
O que levou a metediça da Moura, pendura e devota do seu sectário interesse político e religioso a fazer essa observação, foi o facto de ter lido a notícia onde o Zé divulgava uma grande inundação perto da sua residência, precisamente na rua, com o nome daquele poeta português que cegou aos seis anos.
Decorriam os trabalhos de colocação de grandes canos de saneamento nessa rua, quando um temporal chuvoso de intenso aguaceiro fez-se sentir. A água da chuva que caiu, encheu rapidamente as valas da tubagem, que transbordaram e levaram água e terra rua abaixo, entrando por um portão de acesso a uma ilha.
A ilha, de pequenas e pobres habitações, foi construída precisamente no ale de entrada duma antiga casa de lavradores, que rendiam bom dinheiro ao proprietário. Os caseiros das pequenas casas, algumas só de quarto e cozinha, tinham uma retrete comunitária a um canto da ilha, da qual todos se serviam.
A quantidade de água rua abaixo, levando terra e lama, entrou pelas casas dentro, tudo molhando e enlameando.
Ao saber do sucedido, o repórter do jornal local, foi fotografar e inteirar-se do sucedido para fabricar a notícia.
No contacto com os inquilinos, verificou que nenhuma das pequenas habitações estavam registadas, com o senhorio a nada pagar às finanças, em função do que recebia das rendas. Isso mesmo testemunhou quando alguns moradores lhe mostraram o contrato de arrendamento, sem carimbo das finanças, mal preenchido e cuja assinatura do senhorio era somente a palavra de alcunha, assim como assinava os recibos das rendas.
Com a recolha sobre todos os estragos da enxurrada de água e lama, mais as ilegalidades que ali se cometiam, por um senhorio muito amigo da política e da religião da Moura, do poder partidário local, o jornalista do semanário, descarregou e pôs publicamente a nu, não só as consequências e estragos das fortes chuvadas, como as condições em que viviam os pobres moradores explorados em pequenos “casebres” ilegais, que eles próprios iam arranjando às suas custas, pagando mensalmente elevadas rendas ao proprietário que os enganava com um contrato fraudulento de arrendamento e um recibo de aluguer onde nem o nome do proprietário constava.

Ora, ao ler a notícia, e fazendo parte do sectário poder local, político e religioso, logo que o Zé repórter local se aproximou de si, a Moura, cumpridora do seu dever enquanto ovelha do seu rebanho vicioso, apressou-se a balar ao repórter.
- Ó Zé, então escreveste a dizer mal dos nossos”!?