Era puto como tantos,
Na rua soltos à toa,
Sem que a fome visse a broa,
Perdidos nos seus encantos.
Conhecer todos os campos,
De fruta verde mas boa:
Mas se o grito, o alerta soa,
Correm todos como bandos.
Tudo era devorado,
Fruta, cebolas, cenouras
E o grépio do caminho.
Quase sempre escorraçado,
Todo o filho de mãe moura,
Que não era rapazinho.
Colégio, ama, infantário,
Eram coisa para meninos:
Putos da rua sozinhos,
Cresciam noutro fadário.
De quantos bandos fiz parte,
Nessa infância ignorada.
Por nunca ser ajudada,
Sobreviver era uma arte.
Inventavam-se guerreiros,
Cobóys, índios, valentia!
Cavalos e cavaleiros
Cavalos e cavaleiros
O jogo da sameirinha,
Com os putos num magote;
E havia sempre um pichote
Que fazia batoteira.
Era o jogo do peão,
Do crivo e da pedrinha
E outro, da caçadinha,
Bate fica e ao ladrão.
E a volta a Portugal,
Com laranjinhas e bugalhos,
Com pontes, túneis e atalhos.
E outras tantas diversões,
Inventavam putos bons,
Vida feita de frangalhos.
E foi o rio Leça banheira,
Dos putos da minha idade;
Mergulho da mocidade,
No perigo da brincadeira.
O jogo da bola em água,
No rio que sem parar,
Foi um dia lá ficar,
Um de nós que deixou mágoa.
A perda de um companheiro,
Não se esquece em qualquer tempo,
A dor mancha o sofrimento!
Era assim numa outra era,
Impávidos putos de outrora:
Com saudade e com lamento
Arredores dos grandes centros
Dormitórios do trabalho
Isentos de agasalho
Social, contra os ventos.
Não eram as voltas do tempo,
Nem o uivar das noites frias
Que roubavam alegrias:
Mas fome, dor e sofrimento.
Quantos filhos do país
Botões da mesma raiz
Vegetaram na existência?
Quantas almas de petiz
De irreal vida infeliz
Foram vítimas da inocência?
Este tempo já roubou
A esse tempo a lembrança,
Nosso tempo de criança
Por onde a fome passou.
Nessa era já não estou
Recordo-a por segurança.
Seja sempre só lembrança
Jamais digam que voltou.
E da luta sem sarilhos
Do esforço p’ra viver,
A culpa vive sem merecer.
Pois a vida não tem culpa
Pelo homem avessada
Nesse tempo esfarrapada.
José Faria
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