A CEIA DE NATAL NO MINHO
(de Ramalho Ortigão)
Depois celebrava-se a ceia, o
mais solene banquete da família minhota. Tinham vindo os filhos, as noras, os
genros, os netos. Punha-se a toalha grande, os talheres de cerimónia, os copos
de pé, as velhas garrafas douradas. Acendiam-se mais luzes nos castiçais de
prata. As criadas, de roupinhas novas, iam e vinham ativamente com as rimas de
pratos, contando os talheres, partindo o pão, colocando a fruta, desrolhando as
garrafas.
Os que tinham chegado de longe,
nessa noite, davam abraços, recebiam beijos, pediam novidades, contando
histórias, acidentes e aventuras de viagem; - os caminhos estavam uns barrocais
medonhos… E falavam da saraivada, da neve, do frio da noite, esfregando as mãos
de satisfação por se acharem enxutos, agasalhados, confortados, quentes, na expectativa de uma boa ceia, sentados no velho canapé da família.
E o nordeste assobiava pelas
fisgas das janelas; ouvia-se ao longe bramir o mar ou zoar a carvalheira,
enquanto da cozinha, onde ardia no lar a grande fogueira, chegava, num respiro
tépido, o aroma do vinho quente fervido com mel, com passas de Alicante e com
canela.
Finalmente, o bacalhau guisado
dava a última fervura; as frituras de abóbora-menina, as rabanadas, as orelhas-de-abade
tinham saído da frigideira e acabavam de ser empilhadas em pirâmide nas
travessas grandes. Uma voz dizia: - Para a mesa! Para a mesa! (…/…)
Assim narrou Ramalhos Ortigão em “As
Farpas, Vol. 1, do Livro de Leitura do ensino liceal, aprovado oficialmente
como livro único em 24/VI/1950, organizado por José Pereira Tavares.
Os tempos mudaram e com o avanço
quase descontrolado das tecnologias, continuam a mudar de forma muito acelerada
o comportamento humano, individual e coletivamente.
Estes usos, costumes e tradições
baseados religiosamente, culturalmente e socialmente, como pilares das
comunidades, e sobretudo das famílias, vão se transformado em simples acontecimentos
de festa, desprendidos de razões e dos motivos que lhe estão na origem.
Neste século 21, já com 20 de
idade, muito já se perdeu sobre o fundamento, a organização e a razão da
reunião da família na Ceia de Natal em que se comemora (para os cristãos) o
nascimento de Cristo.
E, onde ela ainda se manifesta, há
um elevado desprendimento da sua comemorativa e festiva finalidade. Já não se
contam histórias, e em muitos lares o relacionamento não passa de simples
expressões. Todos juntos mas cada um no seu mundo.
Ligados ao mundo e desprendidos
da família, mesmo na ceia de Natal, o telemóvel é quem recebe todas as atenções,
mais que o menino Jesus. E se o pai Natal merece algum respeito, é graças a
alguma ansiedade ou egoísmo no momento de distribuição de prendas, depois da
ceia.
Casos há, onde se inverte o local
da ceia, que não recebe filhos, genros, noras e netos, mas que recebe pais e avós.
E estes, pela sua idade mais à frente, por já contarem com um passado distante, que muitas vezes são postos de lado das
conversas entre os mais novos, que de quando em quando se socorrem do telemóvel
para terem tema de conversa, com e sobre o exterior. A ascendência
descontextualizada do presente dos mais novos, nem com a distração de programas de televisão se ocupa. Apesar
de tão ricos nesta altura.
O que passa na TV é o que os mais
novos gostam de ver que se vê, mesmo que não passem de programas sem qualquer
valor, e até impróprios para o acontecimento natalício... e mesmo sem lhes prestar atenção, sempre com os olhos sobre os telemóveis.
Numa Ceia assim, houvessem
ascendentes que tivessem a ousadia de recordar a narração de Natal de Ramalho
Ortigão, para compor o momento e a razão da reunião e ceia, e os cultos jovens do presente, de telemóvel na mão, rir-se-iam de
forma trocista, não ligariam nenhuma ou mandariam calar a ascendência.
E se a ascendência convidada para a ceia de Natal, ousar pedir para mudar de canal televisivo, responder-lhe-ão: -
“quem não quer ver, tem bom remédio”.
A união da família, enquanto
orientação e pilar da comunidade humana, evidenciada com toda a clareza por
Ramalho Ortigão, vai se desmoronando na insensibilidade das atitudes e palavras
de comunicação tão desprendidas entre os elementos que se sentam à mesa da Ceia
de Natal, e no desligamento que as novas tecnologias proporcionam, de grande e
vasta comunicação com o mundo, ressecção e envio de mensagens até para o outro
lado do mar ou das montanhas, mas ignorando-se a ascendência sentada a seu
lado.
José Faria