EM SÃO MIGUEL O ANJO

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

CONTOS DE MIGUEL TORGA


 A RESSURREIÇÃO
De Miguel Torga
Gostei tanto de ler os “CONTOS DA MONTANHA” DE Miguel Torga, que me dei ao cuidado de aqui transcrever um “pedaço” inicial de uma dessas narrativas.

- “Não há em toda a montanha terra tão desgraçada e tão negra como Saudel. Aquilo nem são casas, nem lá mora gente. São tocas com bichos dentro.
Apesar disso, Cristo Nosso Senhor, aos domingos, digna-se visitar a aldeia na pessoa do padre Unhão, que vem rezar missa ao nascer do sol. O padre apeia-se da égua, assoa-se a um lenço tabaqueiro encardido, tosse, dá duas badaladas no sino e entra numa igreja tão escura e tão gelada, que se lembra sempre duma pneumonia dupla. Diz o intróito com muita solenidade, sobe as escadas de granito, lê, treslê, vira-se, volta-se, benze-se, e, por fim, prega.
É sempre uma descompostura de cima abaixo: que ninguém presta. Que os pais são assim, que as mães são assado, que as filhas são porcas, que os filhos são brutos, que é tudo uma miséria.
Saudel, abismado, ouve. Depois, à saída, pôs-se a ruminar. Quem irá dizer lá em cima tão mal do povo? Os homens cavam de manhã à noite, as mulheres parem quantas vezes a Virgem Maria quer, os rapazes e as raparigas vão com o gado… Quem irá meter coisas daquelas nos ouvidos de Deus?
Seja quem for, o certo é que no domingo seguinte, Nosso Senhor, sempre pela boca sem dentes do abade, recomeça a ralhar: “Que o fim do mundo está perto e que não haja ilusões. Todos para as profundezas do inferno! Os velhos, as velhas e os novos. Ficam só as ovelhas.
Saudel, aí, desespera. Chora umas lágrimas negras, barrentas, e geme como quem uiva.
Os rebanhos na serra sem pastor! O que teriam dito de Saudel no céu!
E o pior é que nem o próprio padre Unhão descortina saída para semelhante calamidade, depois da falência do remédio que tentou. Seguro de que a misericórdia divina tudo pode, resolveu salvar o desterrado lugarejo e a sua endemoninhada gente, através de um ato coletivo de expiação. Endoenças. Estava a Semana Santa à porta. Realizasse o povo Endoenças e remisse os pecados na dor e na oração.
Saudel, lanzudo como os carneiros, nem sequer percebeu o que eram Endoenças.
E foi preciso o padre explicar. Eram a Paixão e a Morte do Nosso Senhor Jesus Cristo, representadas ao natural. (…/…)”
- E pronto. Nem me atrevo a descrever mais deste conto de Miguel Torga. É muito interessante, mas ao fazê-lo, lembro e relembro e tenho sempre presente e perturbantemente, aquele sermão, aqueles sermões continuados e cansativos e repetidos diariamente, em cinco dias de festa religiosa e profana da Senhora da Natividade. Pois da mesma forma que em Saudel o padre Unhão falava como um pastor para as ovelhas, da mesma forma bufam, tossem e cospem os altifalantes espalhados pelas ruas da minha aldeia maiata às portas da cidade do Porto.
José Faria

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