A RESSURREIÇÃO
De
Miguel Torga
Gostei
tanto de ler os “CONTOS DA MONTANHA” DE Miguel Torga, que me dei ao cuidado de
aqui transcrever um “pedaço” inicial de uma dessas narrativas.
-
“Não há em toda a montanha terra tão desgraçada e tão negra como Saudel. Aquilo
nem são casas, nem lá mora gente. São tocas com bichos dentro.
Apesar
disso, Cristo Nosso Senhor, aos domingos, digna-se visitar a aldeia na pessoa do
padre Unhão, que vem rezar missa ao nascer do sol. O padre apeia-se da égua,
assoa-se a um lenço tabaqueiro encardido, tosse, dá duas badaladas no sino e
entra numa igreja tão escura e tão gelada, que se lembra sempre duma pneumonia
dupla. Diz o intróito com muita solenidade, sobe as escadas de granito, lê, treslê,
vira-se, volta-se, benze-se, e, por fim, prega.
É
sempre uma descompostura de cima abaixo: que ninguém presta. Que os pais são
assim, que as mães são assado, que as filhas são porcas, que os filhos são
brutos, que é tudo uma miséria.
Saudel,
abismado, ouve. Depois, à saída, pôs-se a ruminar. Quem irá dizer lá em cima
tão mal do povo? Os homens cavam de manhã à noite, as mulheres parem quantas
vezes a Virgem Maria quer, os rapazes e as raparigas vão com o gado… Quem irá
meter coisas daquelas nos ouvidos de Deus?
Seja
quem for, o certo é que no domingo seguinte, Nosso Senhor, sempre pela boca sem
dentes do abade, recomeça a ralhar: “Que o fim do mundo está perto e que não haja
ilusões. Todos para as profundezas do inferno! Os velhos, as velhas e os novos.
Ficam só as ovelhas.
Saudel,
aí, desespera. Chora umas lágrimas negras, barrentas, e geme como quem uiva.
Os
rebanhos na serra sem pastor! O que teriam dito de Saudel no céu!
E
o pior é que nem o próprio padre Unhão descortina saída para semelhante
calamidade, depois da falência do remédio que tentou. Seguro de que a
misericórdia divina tudo pode, resolveu salvar o desterrado lugarejo e a sua
endemoninhada gente, através de um ato coletivo de expiação. Endoenças. Estava
a Semana Santa à porta. Realizasse o povo Endoenças e remisse os pecados na dor
e na oração.
Saudel,
lanzudo como os carneiros, nem sequer percebeu o que eram Endoenças.
E
foi preciso o padre explicar. Eram a Paixão e a Morte do Nosso Senhor Jesus
Cristo, representadas ao natural. (…/…)”
-
E pronto. Nem me atrevo a descrever mais deste conto de Miguel Torga. É muito
interessante, mas ao fazê-lo, lembro e relembro e tenho sempre presente e
perturbantemente, aquele sermão, aqueles sermões continuados e cansativos e
repetidos diariamente, em cinco dias de festa religiosa e profana da Senhora da
Natividade. Pois da mesma forma que em Saudel o padre Unhão falava como um
pastor para as ovelhas, da mesma forma bufam, tossem e cospem os altifalantes
espalhados pelas ruas da minha aldeia maiata às portas da cidade do Porto.
José
Faria
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