EM SÃO MIGUEL O ANJO

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

O CRUZEIRO NA BEIRA DO CAMINHO


Eramos muitos, mais de uma dúzia. As nossas idades deveriam andar entre os sete e os doze anos. Descalços como era habitual nos miúdos pobres dos anos sessenta. Íamos para Parada a banhos. - Parada é o nome de um lugar da freguesia de Águas Santas atravessado pelo rio Leça. Por isso quando nos referíamos a Parada, era ao rio que nos referíamos, onde nos banhávamos em dias de estio. Tínhamos como pontos de referência vários locais do rio, que eram os mais frequentados e menos perigosos, menos profundos. O canhoto velho, o canhoto novo (referindo-se aos locais dos cepos que ficaram depois do corte de velhos choupos na margem do rio), a leiteira, o moleiro, as “sete pedrinhas”, - cobre sete homens! Diziam desse local estreito e profundo que terminava numa parte mais larga com catarata, de areal no fundo, que serviu às mil maravilhas de Praia dos Tesos, como lhe chamávamos.
No caminho, depois descermos toda a rua do Boi Morto, e de comermos do chão junto com os pardais, grãos de centeio, que caiam dos camiões à entrada da fábrica de massas e bolachas, seguíamos rua do Mosteiro acima, para depois do cruzeiro cortarmos à esquerda por um caminho entre campos, até às margens do rio junto do moleiro, onde uma queda de água era limitada por um passeio em pedra de onde nos atirávamos à água.
Antes disso, ao passarmos junto do cruzeiro, havia um ou outro que dissera aos restantes que deveríamos rezar para não nos acontecer nada, para termos a proteção do senhor da cruz. Assim, sempre que íamos para Parada, para rio junto ao moleiro, já sabíamos o que fazer ao passarmos ao cruzeiro: rezarmos e pedirmos para não morrermos afogados. E fazíamo-lo com infantil e inocente devoção, terminando a oração que cada um improvisava, com o sinal da cruz. E lá seguia-mos mais confiantes e seguros para a praia dos tesos.
Um dia aconteceu uma desgraça. O nosso amigo que tinha o apelido de Totobola, jovem muito animado, divertido e destemido, de todos bem conhecido e quase nosso guardião, morreu afogado. Foi buscar a bola de um colega, que fora arrastada pela corrente para local profundo, cheio de redemoinhos e próximo de uma captação de água no rio e lá ficou.
A tristeza surda e profunda trouxe-nos a casa, silenciosos e entalados pelas margens de um afluente do rio Leça, o ribeiro do Boi Morto e de Teibas. Seguimos o seu curso para montante, pelos campos de cultivo, até à linha do comboio que atravessa o nosso lugar de Pedrouços.
Depressa se espalhou a notícia. O totobola morreu em Parada!
Eram as férias grandes da escola primária, mas naquele ano, depois desta desgraça e da perda do totobola, não fomos mais para o rio.

O TOTOBOLA MORREU
Foi o rio Leça banheira,
Dos putos de tenra idade;
Mergulho da mocidade,
No perigo da brincadeira.

O jogo da bola em água,
No rio que sem parar,
Foi um dia lá ficar,
Um de nós que deixou mágoa.

A perda de um companheiro,
Nesse tempo de criança,
Fica-nos no pensamento.

Foi o rio seu banheiro,
Onde morreu a esperança
Semeando sofrimento.
José Faria

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