EM SÃO MIGUEL O ANJO

sábado, 9 de novembro de 2019

O EDITAL - 1950

Manuel era um petiz de palmo e meio
(ou pouco mais teria de verdade),
De rosto moreninho, e olhar cheio
De inteligente e enérgica bondade.

Orgulhava-se dele o professor…
No porte e no saber era o primeiro.
Lia nos livros que nem um doutor,
Fazia contas que nem um banqueiro.

Ora uma vez ia o Manuel passando
Junto ao adro da igreja. Aproximou-se,
E via à porta principal um bando
De homens a olhar o quer que fosse.

Empurravam-se todos em tropel,
Ansiosos por saberem, cada qual,
O que vinha a dizer certo papel
Pregado com obreiras no portal.

“Mais contribuições!” - Supunha um.
“É prás sortes, talvez!” – Outro volvia.
Quantas suposições! Porém nenhum
Sabia ao cero o que o papel dizia.

Nenhum (e eram vinte os assistentes)
Sabia ler aqueles riscos pretos.
Vinte homens, e talvez inteligentes,
Mas todos – que tristeza! – Analfabetos!

Furou Manuel por entre aquela gente
Ansiosa, comprimida, amalgamada,
Como uma formiga diligente
Por um maciço de erva emaranhada.

Furou, e conseguiu chegar adiante.
Ergueu-se nos pesitos para ver;
Mas o edital estava tão distante,
Lá tanto em cima, que não o pôde ler.
 
Um dos do bando agarrou-o então
E levantou-o com as mãos possantes
E calejadas de cavarem o pão…
Houve um silêncio entre os circunstantes.,

E numa clara voz melodiosa
A alegre e insinuante criancinha
Pôs-se a dizer àquela gente ansiosa,
Corretamente o que o edital continha.

Regressava o abade do passal,
A caminho da sua moradia.
Como era já idoso e via mal,
Acercou-se para ver o que haveria…

E deparou com este quadro lindo
De uma criança a ler a homens feitos;
De um pequenino cérebro espargindo
Luz naqueles cérebros imperfeitos…

Transpareceu no rosto ao bom abade
Um doce e espiritual contentamento,
E a sua boca, fonte de verdade,
Disse estas frases com um brando acento:

- “Olhai, amigos, quanto pode o ensino…
Sois homens; alguns pais e até avós.
Pois só por saber ler, este menino
É já maior do que nenhum de vós!”

Augusto Gil, Versos
Do livro de leitura (parte II (2º ano)
De 1950

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